26 de mai. de 2004

Dose para Leão

Fui contratada para trabalhar no posto de gasolina. É um posto completo, parada de caminhões, com restaurante, lanchonete, pizzaria e venda de artigos de primeira necessidade. Fica aberto vinte quatro horas. Bem na esquina das avenidas 62 com 126, do lado da agência do correio. Do outro lado, tem o Mc Donald’s e o banco "People"s . Na frente, a lavanderia e uma das oficinas mecânicas. É na avenida 62 que o xerife fica de tucaia para pegar os que excedem as 45 milhas. Tem vez que ele se esconde no posto, no meio dos caminhões que estão estacionados, o salafrário. Tudo isto, a três quilômetros de nossa casa.

Nem foi entrevistada. Cheguei, solicitei o formulário de pedido de emprego, preenchi e devolvi. Nem saí da loja e o gerente veio lá dos fundos para me conhecer e me dizer onde eu devia ir para os exames médicos e quando eu poderia começar. Salário? Eu me esqueci de perguntar qual era. Telefonei depois e fiquei sabendo. Tudo bem.

Tive que aprender a funcionar o caixa, as mil maquininhas de cartão de crédito, de débito, cartão de cliente que tem conta tipo 'pendura aí que depois eu pago', mais os cartões dos motoristas de caminhões e os cartões que devem funcionar nas bombas de combustíveis, mais aquela pingolinha enjoada que não passa de um chaveiro e que deve funcionar como um cartão mas sempre dá encrenca e mais e mais... Tudo bem.

Tive que aprender a preparar as pizzas do jeito deles, com as medidas certas, o número correto de fatias de presunto, a canequinha certa de molho, a temperatura correta do forno e o tempo exato de assar. Tudo bem.

Tive que varrer chão, limpar prateleiras, varrer estacionamento, levar o lixo para o container lá fora, destravar a merda do maquinário do lava-jato, preparar o sabão pro lava-jato, limpar, lavar, esfregar, de chão da loja a panelas na cozinha. Tudo bem.

Tive que lavar banheiros…misericórdia!…isto foi dose! O das mulheres não era tão miserável mas, o dos homens! Não vou entrar em detalhes porque é nojento demais. Mas, a gente bota dois pares de luvas e seja o que Deus quiser.

Tive que fazer lista de pedidos de compras, desempacotar as compras na chegada e colocá-las nas prateleiras, arrumar o frigorífico, guardar as caixas dos congelados nos freezers, fechar o caixa, organizar a papelada e calcular os números no final do meu expediente. E fazer café, desmontar a máquina de sorvete e lavar ela todinha, limpar as estufas dos salgados. Até aí, tudo bem, muito bem mesmo.

***

É verão e dos brabo! Eu, atrás do balcão, no caixa. Entra um homem de seus trinta e caquerada. Alto, loiro descabelado, branquelão. Vestido de bermudas de calça cortada, butinão esgarçado, camiseta branca imunda e suada. Ele vai ao banheiro. Na volta, passa pela máquina de café e se serve de um copão enorme. Acrescenta o creme e muito açúcar.

Quando estaciona na minha frente e põe o copo no balcão, eu vejo que as mãos dele estão absolutamente pretas de sujeira. Não era sujeira de óleo, terra, qualquer coisa reconhecível. Era craca mesmo, encardida nas linhas das palmas, era falta de água e sabão por uns doze dias meeeeesmo. A imundície ia até os cotovelos, mais ou menos.

- São um dólar e setenta centavos, digo.

Ele enfia a mão no bolso dianteiro, tira uma bola de notas amassadas e joga dois dólares no balcão. Nem dinheiro de pedinte da escadaria da igreja São José é tão mal tratado e embolado deste jeito.

Pego o dinheiro... está MOLHADO de SUOR!! "Ô.. meu bom Deus..." Os cabelos de meu cangote estão todinhos em pé, de tanto nojo. "O bolso da frente... suado deste jeito, a ponto de empapar o dinheiro... meeeeu Deus, tenho que lavar as mãos URGENTE... suor do saco do cara...ááiii que não vou conseguir despistar". Mas, tudo bem, despisto. Boto o dinheiro do lado de fora da gaveta para secar e devolvo o troco.

Quando olho de novo para ele, noto uma coisa estranha. O lábio inferior está estufado, muito estufado e tem uma coisa marrom aparecendo. É uma bolota de um treco marrom horrível, bem alí entre os dentes de baixo e o lábio.

Ele me diz alguma coisa que não entendo e peço para repetir.

- owf ...ar...omm...ountn...ommm...?
- Desculpa. Ainda não entendi. O senhor pode repetir, por favor?

Ele me faz um sinal de peraí com a mão preta, caminha até a porta, estica só a cara lá fora e dá uma cusparada de uns tres metros de distância, bem na frente da loja, bem lá no meio das pessoas que vinham entrando. Aquela coisa nojenta, parecendo bosta de gato, se espalha no estacionamento, junto com uma tinta marrom que deixa um rastro até o passeio.

Ainda estou com os olhos esbugalhados, tentando entender de que se trata, quando ele me pergunta, alto e claro "Qual a distância daqui até Mountain Home". A bolota do beiço tinha desaparecido. Mais tarde fico sabendo que era fumo de mascar.

Dou a informação e é a conta. Ao ouvir meu sotaque, ele arregala os olhos como se estivesse ouvindo uma marciana cantando em noite de lua cheia.

- De onde você é????? Você NÃO é daqui!!! De onde??
- Do Brasil. Respondo, já meio prevendo, como diria meu avô Gilberto, "lá vem bosta".
- Do Brazil? Verdade? É mesmo? Do "Brrezzill"?? Oh, meu Deus...

Continuo esperando...lá vem bosta, lá veem... Dito e feito:

- Imagine... deve ter sido um TREMENDO CHOQUE CULTURAL para você! Vir daquele lugarzinho tão pequeno para este primeiro mundo...Ohh, my! Tenho até pena de você, do TREMENDO CHOQUE CULTURAL que você deve estar passando por... E ele fica lá parado, esperando minha resposta...
- Próximo! Eu grito. Sorte minha que a fila estava grande.

Tudo bem-tudo bem, até certo ponto! Paciência tem limite!

Blog: NEGERIGELETSCHTEMPOIT

Um comentário:

Anônimo disse...
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