19 de mai. de 2004

Peixe fora d'agua

"Quase toda a minha vida, eu fui uma estrangeira, condição que aceito por
não ter outra alternativa. Várias vezes vi-me obrigada a partir, rompendo
laços, deixando tudo para trás para recomeçar a vida em outro lugar".

(Isabel Allende, "Meu país reinventado")



Eu tinha encomendado esse livro e chegou agora há pouco na livraria da
editora onde trabalho. Fui lá buscar e, no caminho de volta para a minha
sala, vários pensamentos foram me passando pela cabeça.

É que ontem à noite eu reencontrei uma amiga carioca que eu não via há pelo
menos uns bons 4 ou 5 anos e de quem, na verdade, eu nunca fui muuuito
próxima. Sempre quis guardar contato porque das poucas vezes em que
conversamos nós falamos durante horas a fio. Ontem não foi diferente : nos
encontramos na saída do meu trabalho e fomos passear por Paris e jantar
crêpes. Das 7 da noite até às. 4 da manhã (!), a gente não parou de
conversar - e ficou ainda muito assunto pendente.

Um dos assuntos foi justamente a expansão de horizontes que acontece quando
se mora em outro país. Conhecer outras maneiras de vida, novos pontos de
vista, opiniões e práticas culturais até então desconhecidos é
enriquecedor - mas poderia ser apenas uma anedota para contar para os amigos
do antigo país. Tenho até hoje amigos no Brasil que não saem do
estereotipado « falaê, francês toma banho ou não toma, afinal ? », morrendo
de rir e se achando super por dentro dos hábitos franceses.

Claro, já é um primeiro passo ser capaz de ver que há uma diferença. Outra
coisa muito diferente é tentar entender essa diferença, não no contexto da
tua cultura mas sim inserida na cultura do outro. Franceses são rabugentos e
atendem mal no restaurante ? Sim e não. Para os parâmetros da cultura
brasileira, sim; no contexto cultural francês, não, eles estão sendo «
normais ».

Mas acho que o verdadeiro aprendizado quando moramos no exterior é
conhecermos nós mesmos. Primeiro, porque estar fora é trazer consigo, sem
perceber, todo o Brasil ; o que vai nos emocionar, o que vai nos dar
saudades, a maneira com que vamos começar a entender nosso novo país passa
pelo contexto cultural brasileiro. Mas, mais do que isso, para a maioria dos
estrangeiros nós incorporamos à primeira vista a imagem do "ser brasileiro";
transformamo-nos em uma caricatura, um estereótipo, não sou mais ' a
Flabb ', sou ' todas as brasileiras '. Na França os clichês falam de
futebol, mulatas inzoneiras sambando, bossa nova e cirurgia plástica ; devo
então decidir, a cada instante, se distancio-me ou se incorporo esses
clichês. Qualquer que seja a leitura da minha ' persona ' por estrangeiros,
o referencial passará sempre pelas informações que eles têm sobre meu país.
E, ao constatar a forma com que me vêem, é impossível eu não me questionar :
« sim, eu assisto jogos de futebol durante a Copa do Mundo, mas serei eu uma
brasileira típica ? O que fazer agora, reforço o estereótipo mostrando a
bandeira no peito, com orgulho, ou fujo totalmente e renego minhas raízes
culturais? ».

(Intermezzo - Nem tanto ao mar nem tanto à terra, Flabb, dir-me-ão vocês -
uia, estou cheia de mesóclises e afins, hoje. « Eu sou eu e pronto, não
tenho que agradar ninguém ». Ai meu jesuscristinho. Não estou falando de
mudar para se mostrar pra estrangeiro não. Estou falando da mudança na
percepção de auto-identidade de um brasileiro que vai morar fora - não, de
qualquer pessoa estrangeira, longe do seu país. Podemos continuar ?).

O segundo ponto desse processo de auto-conhecimento é algo que eu já tinha
pensado, mas não ligado ao fato de ser estrangeiro. Isso foi minha amiga que
disse ontem e achei interessantíssimo. Ela disse que, após viajar um mês
pela Europa e ter conhecido uma boa centena de pessoas de várias
nacionalidades, ela tinha aprendido muito sobre si mesma. A cada vez que
precisava se apresentar para alguém, ela percebia que não tinha mais os
referenciais que tinha no Rio - a linguagem não era mais a mesma. Uma frase
como ' Oi, eu sou a Fulana, prima do Sicrano, trabalho na empresa Mar do
Norte, moro em Copacabana, fiz a faculdade Diplomão ' só funciona se o
receptor, quem está ali do outro lado ouvindo, consegue decifrar ' o quê '
cada uma daquelas pistas quer dizer. Se você está se apresentando para um
polonês ou um marroquino, de quê adianta falar da faculdade Diplomão ? E aí
você tem que buscar outras coisas dentro de você, para se apresentar - e
percebe que não sabe bem como se definir de verdade.

Ver seu país de longe ; dar-se conta que seus hábitos, que eram até então a
norma de vida, podem ser considerados exóticos por outros ; ter que
pesquisar quem somos, de verdade, quando não podemos utilizar a muleta das
explicações fáceis ; construir uma identidade dentro de um novo ambiente,
posicionando-se em relação ao que pessoas que nunca me viram pensam de mim e
da minha nacionalidade ; tudo isso é um pouco como ser um passarinho que é
levado para o oceano (ou que resolve ir, ou que se apaixona por um peixe, ou
que está fugindo das águias) e precisa decidir se compra um escafandro e se
adapta, se ' voa ' por entre os corais mostrando com orgulho que é pássaro,
se continua reclamando que está difícil porque ' esses peixes são
esquisitos, respiram na água, eu hein ', e que principalmente precisa se
conhecer para poder dizer quem é indo além do ' eu morava no 3° galho à
esquerda da cerejeira. '

Em tempo: sou passarinho escafandrado e cumprimento feliz os peixinhos que
passam. Mas olho com um gosto pro céu azul...

Blog: Tonterias

2 comentários:

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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